Neste ano de 2013 completam-se cem anos da publicação, nas páginas da Philosophical Magazine, da revolucionária trilogia de artigos de Niels Bohr, “Sobre a constituição de átomos e moléculas”, marco da chamada antiga teoria quântica [1]. O modelo de Bohr foi apresentado à comunidade científica dois anos depois dos resultados de seu supervisor Ernest Rutherford com espalhamento de partículas alfa [15], que podiam ser explicados supondo um modelo atômico dotado de núcleo. O modelo “semiclássico” de Bohr foi extraordinariamente bem sucedido do ponto de vista empírico, levando a um grande número de corroborações experimentais — a previsão das séries espectrais do Hidrogênio é apenas uma delas — apesar de estar baseado em um conjunto de postulados que, de um ponto de vista lógico-clássico, é inconsistente. Essa dupla característica — o êxito preditivo somado à inconsistência lógica — tem chamado a atenção de filósofos e historiadores da ciência durante décadas [3], [4], [6], [12], [13], [14].
Arnold Sommerfeld
O modelo de Bohr também é importante porque o seu desenvolvimento ulterior, pelas mãos de Arnold Sommerfeld, levou a uma visão mais abstrata, com a proposição de uma “condição de quantização” de caráter muito geral para os sistemas periódicos, em termos das variáveis canônicas [7]. Essa idéia seria preservada e ressignificada na nova mecânica quântica (a partir de 1925) — na qual os operadores representam as quantidades físicas — com os chamados comutadores. A condição de quantização talvez seja a contribuição mais abstrata e conceitualmente mais profunda de Sommerfeld, vindo somar-se a outras mais conhecidas — as órbitas elípticas para os elétrons, as correções relativísticas, a estrutura fina dos espectros.
Além disso, o modelo de Bohr está na origem de uma linha evolutiva de pensamento que desemboca na teoria da radiação de Bohr-Kramers-Slater de 1924 — teoria que, apesar de não ter sido corroborada experimentalmente, já prenuncia conceitos afins aos da nova mecânica quântica, como o de “oscilador virtual” [4].
Finalmente, o chamado “princípio de correspondência” — a idéia de que, para grandes números quânticos, os valores previstos para as quantidades físicas pela teoria quântica devem se aproximar assintoticamente dos valores previstos pela teoria clássica — também nasce com os trabalhos de Bohr entre 1913 e 1918 [2], tornando-se um importante guia heurístico para boa parte da teoria quântica. Só que, na nova mecânica, passamos a ter uma correspondência de tipo formal, não mais numérico [5] — por exemplo, nos anos 20, a busca das novas equações dinâmicas de evolução dos estados dos sistemas quânticos era guiada por analogias formais com as equações hamiltonianas clássicas [8].
Assim, ao êxito preditivo do modelo de Bohr vem somar-se um surpreendente potencial heurístico. O fato de que um sistema de postulados inconsistentes possa ter originado um programa de pesquisa — o de Bohr-Sommerfeld (ou até mais de um, cf. [4]) — com tais características torna-se, então, ainda mais intrigante sob o ângulo de uma análise filosófica da racionalidade científica.
A radiação emitida em consequência das transições entre níveis energéticos distintos no átomo de Hidrogênio, segundo o modelo de Bohr de 1913. Fonte: Henry Semat, Fundamentals of Physics, 4a. ed. (1966)
Neste centenário, vários trabalhos acadêmicos têm se voltado para analisar o modelo de Bohr e seus desdobramentos sob variados pontos de vista — histórico, epistemológico, pedagógico, etc. Um congresso na Dinamarca reuniu no mês de Junho alguns dos mais importantes historiadores da Física. Um recente dossiê na revista Nature também explorou os desdobramentos da física de Bohr até os dias de hoje. O dossiê inclui um artigo de John Heilbron, historiador que estuda a antiga teoria quântica há décadas [12] e que, por sua vez, acaba de lançar, juntamente com o também historiador Finn Aaserud, um livro que aporta novas fontes e novas interpretações. Finalmente, químicos brasileiros lançam um olhar sobre a história da teoria quântica e celebram o centenário do modelo de Bohr no último número da revista Química Nova, em três textos [9], [10], [11].
Referências
[1] Bohr, Niels. “On the constitution of atoms and molecules”. Philosophical Magazine v. 26, pp. 1-25, 476-502, 857-875, 1913. Tradução brasileira: Sobre a constituição de átomos e moléculas. Introd. por L. Rosenfeld. Trad. por E. Namorado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979.
[2] Bohr, Niels. On the Quantum Theory of Line-spectra [1918-1922]. Mineola, New York: Dover, 2005.
[3] Bezerra, V. A. “Schola quantorum: Progresso, racionalidade e inconsistência na antiga teoria atômica: Parte I: Desenvolvimento histórico, 1913-1925″. Scientiae Studia v. 1, n. 4, pp. 463-517, 2003.
[4] Bezerra, V. A. “Schola quantorum: Progresso, racionalidade e inconsistência na antiga teoria atômica: Parte II: Crítica à leitura lakatosiana”. Scientiae Studia v. 2, n. 2, pp. 207-237, 2004.
[5] Bezerra, V. A. “Estruturas conceituais e estratégias de investigação: Modelos representacionais e instanciais, analogias e correspondência”. Scientiae Studia v. 9, n. 3, pp. 585-609, 2011.
[6] Souza, Edelcio G. de. “Multideductive logic and the theoretical-formal unification of physical theories”. Synthese v. 125, pp. 253-262, 2000.
[7] Sommerfeld, Arnold. Atomic Structure and Spectral Lines. 2ª ed. inglesa. Trad. da 3a. ed. alemã por H. L. Brose. London: Methuen, 1928.
[8] Heisenberg, W. “Quantum-theoretical reinterpretation of kinematic and mechanical relations” [1925]. In: Van der Waerden, B. L. (Ed.). Sources of quantum mechanics, pp. 261-76. New York: Dover, 1968.
[9] Riveros, J. M. “O legado de Niels Bohr”. Quim. Nova, v. 36, n. 7, pp. 931-932, 2013.
[10] Braga, J. P. & Filgueiras, C. A. L. “O centenário da teoria de Bohr”. Quim. Nova, v. 36, n. 7, pp. 1073-1077, 2013.
[11] Filgueiras, C. A. L.; Braga, J. P. & Lemes, N. H. T. “O centenário da molécula de Bohr”. Quim. Nova, v. 36, n. 7, pp. 1078-1082, 2013.
[12] Heilbron, John L. & Kuhn, Thomas S. “The genesis of the Bohr atom”. Historical Studies in the Physical Sciences v. 1, pp. 211-290, 1969.
[13] Kragh, Helge. Niels Bohr and the quantum atom: The Bohr model of atomic structure 1913-1925. Oxford University Press, 2012.
[14] Kragh, Helge. “Niels Bohr between physics and chemistry”. Physics Today, v. 66, n. 5, pp. 36-41, 2013.
[15] Rutherford, E. “The scattering of {alpha} and {beta} particles by matter and the structure of the atom”. Philosophical Magazine, Series 6, v. 21, pp. 669-688, 1911.